A sadia educação e a propagação de ideologias – família e sexualidade nas escolas (1 de 3)

Brasilia, (ZENIT.org) Paulo Vasconcelos Jacobina

Esta semana eu fui convidado a dar uma entrevista num grande canal de TV aberta a respeito de um artigo que eu escrevi no ZENIT, que pode ser encontrado aqui. É claro que eu sabia que a minha fala seria editada, inserida num contexto adverso e, além disso, usada como contraponto para aqueles que defendiam uma posição não somente contraposta à minha – que é perfeitamente compreensível no contexto de um debate público – mas seria habilmente trabalhada para parecer simplesmente insustentável perante interlocutores cujos argumentos não sobreviveriam a um debate verdadeiramente leal. Optei por conceder a entrevista mesmo assim, e tudo ocorreu exatamente como eu previra.

Da minha fala, muito editada, restaram dois trechos: no primeiro, eu apareço afirmando que a discussão a respeito da noção de família é válida, mas é inconveniente fazê-la numa sala de aula composta por crianças de seis anos de idade. No segundo, sou mostrado afirmando que a intenção de introduzir um determinado livro paradidático que trata do assunto é inconveniente numa escola católica. E foi tudo. Em seguida, a reportagem mostrou uma bela mãe declarando que sua filhinha lera o tal livro com ela e que acharam a obra bastante interessante e conveniente, e que quem discorda não deve ter entendido corretamente. Depois uma psicóloga teve longos sete minutos ao vivo para defender no ar que o “novo conceito de família” deve ser trabalhado nas escolas, independentemente de confissão religiosa, e que esta discussão não deve ser impedida por leituras conservadoras ou fideístas do problema. O repórter, muito simpaticamente, anuía com as posições da psicóloga, e mencionava a todo momento as inúmeras mensagens e ligações telefônicas que eram recebidas pela emissora em apoio à referida obra e à “nova visão de família”.

Quero aproveitar agora este espaço para ampliar a referida discussão, de um modo mais detido, tocando os seguintes pontos, objetos da arte da minha fala e que foram simplesmente recortados na referida entrevista:

1. Qual é a diferença entre educar, por um lado, e propagandear uma ideologia para difundi-la na mente das crianças, por outro?

2. À luz da teoria aristotélica das quatro causas e dos atos e potências, bem como da noção aristotélico-tomista de analogia de atribuição e de proporcionalidade, o que significa “família”?

3. Quem estabelece o critério, numa escola católica, a respeito das divergências ideológicas e filosóficas que podem surgir quanto à educação das crianças, especialmente no campo da sexualidade e da família?

Estas não são questões fáceis, nenhuma delas. Nem para nós, e muito menos para as crianças de seis ou sete anos que estão sendo expostas a este debate simplesmente como se fosse matéria encerrada e consensual em que as respostas não somente já estão dadas, como serão virtual e inevitavelmente balizadoras unívocas do futuro da humanidade. Pretende-se que um debate que ainda divide a tantos de nós com boa formação filosófica, teológica e jurídica deva ser introduzido na educação infantil como se fosse uma preparação das crianças para viver num suposto mundo futuro em que um dos lados desta discussão venceu e dominará incontestavelmente.

A terceira destas questões, sobre os critérios que devem nortear as divergências ideológicas numa escola católica, estão bem discutidos no artigo em que debatemos a adoção, em certas escolas católicas, de um livro que se propunha a apresentar a crianças muito pequenas – seis a oito anos – certas “noções alternativas” ou “plurais” de família, em nome de certo sentimentalismo, algum vanguardismo e muito apelo ao chamado “pensamento politicamente correto. O artigo original, em que se discutiu a adoção deste livro por uma escola católica, está aqui.
Vamos tentar estabelecer algumas pistas para as outras duas questões propostas acima.
A diferença entre educar e propagandear uma ideologia.
Educar, dentro da melhor tradição aristotélico-tomista, sempre envolveu dois passos que podem ser apresentados com duas simples palavras: “conhecer” e “refletir”. A palavra “conhecer”, aí, representa a atitude de quem, provido pela natureza de inteligência e vontade, é interpelado pelas coisas, cujo ser se dá à pessoa pela relação estabelecida entre as coisas e o conhecedor, e em que as coisas, em seu ser, não somente precedem o conhecedor, como têm um ser cujo fundamento está fora daquele que conhece. É assim que, na melhor tradição filosófica aristotélico-tomista, a pessoa conhece, e conhecendo, reflete sobre seu próprio ato de conhecer, ou seja, sobre sua inteligência, sobre sua vontade, sobre o seu próprio ser e sobre o ser do mundo que o interpela para ser conhecido. Ora, nesta reflexão, ele descobre que o mundo não é rígido e determinado, mas aberto ao exercício da sua liberdade: mas este mundo e esta liberdade são dons, que têm como fundamento último este mesmo ser que o precede como fundamento das coisas e, em última instância, de si mesmo. As palavras centrais, aqui, portanto, são “conhecer”, “refletir”, “vontade”, “liberdade”, “ser” e “dom”. Sem necessidade de nenhum apelo prévio a qualquer “revelação religiosa”, eis aqui, em apertadíssimo resumo, toda uma fundamentação para uma pedagogia perfeitamente criatural, ou seja, desprovida de qualquer fechamento a priori para um eventual questionamento, estritamente razoável, sobre o autor desses tantos dons. O ser que me interpela, e por fim o meu próprio ser, tem outro fundamento que não o eu mesmo. Para uma pedagogia deste tipo, se há Deus, ele é necessariamente o Outro, e jamais é confundido com o que caminha pela trilha do conhecer (nem tampouco o que caminha pela trilha do ensinar). Numa visão educacional assim, jamais uma pessoa humana pode tomar o lugar de Deus. Mesmo que não creia em Deus.

Este ser que interpela o conhecedor, e precede logicamente ao conhecimento, tem proporção com a inteligência que conhece; revela-se com uma estrutura ontológica muito simples, em que o dinamismo do existir não tem uma rigidez determinista, mas longe disso, caminha das potências aos atos, aberto à liberdade humana, através de quatro causas: a causa material, a causa eficiente, a causa formal e a causa final. É neste contexto que se insere a liberdade humana: a vontade, guiada pela inteligência capaz realmente de conhecer, reconhece as potências e é capaz de escolher bem, ou seja, de transformar as potências do mundo e as da sua própria pessoa, em atos. Transformando o mundo, pela compreensão adequada das quatro causas, a pessoa humana exerce adequadamente a sua liberdade quando escolhe as causas adequadas para atualizar as potências das coisas, as potências do outro e as suas próprias potências – que, neste caso, chamam-se virtudes.

O que significa “liberdade”, neste contexto.
Liberdade, portanto, não é uma palavra que designa uma incondicionada capacidade de escolher, mas a capacidade de escolher bem – atualizar as potências do mundo, escolhendo as causas certas e proporcionadas para tanto, é ter a reta ciência e a boa tecnologia. Atualizar as próprias potências é tornar-se virtuoso. Qualquer escolha que não respeite esta estrutura ontológica não leva à atualização de potências, mas à violência, à frustração, ao fracasso. Eis porque ser livre não é simplesmente ser capaz de escolher: este é apenas um pressuposto necessário à liberdade. Ser livre é conhecer potências e atos, conhecer as causas que atuam o mundo e conhecer-se como pessoa, e, dirigindo inteligentemente a vontade, ser capaz de escolher bem, de tal modo a ser capaz de aperfeiçoar as potências em atos. Uma pessoa bem educada é uma pessoa capaz, portanto, de exercer sua liberdade para colaborar virtuosamente com o bem comum, ou seja, com o aperfeiçoamento das coisas e do outro, e, quanto a si mesmo, com uma vida mais virtuosa – numa palavra, mais feliz.

Numa pedagogia assim, o caráter criatural (esta palavra não está sendo usada aqui religiosamente, mas apenas para exprimir o respeito à contingência do conhecedor) de quem conhece expressa-se numa linguagem que conhece os termos unívocos, de uso tecnológico, mas conhece também os termos equívocos e, principalmente os termos análogos, que possibilitam falar adequada e verdadeiramente sobre aquilo que em si mesmo é cognoscível, mas também é inesgotável – e portanto não se dá ao conhecimento de caráter dominador e tecnológico. A analogia se expressa na relação da pessoa que conhece, por um lado, com o cosmos, com o outro, consigo mesmo e com a transcendência, por outro. A analogia respeita , a um só turno, a verdade e o mistério inesgotável do ser.

A falsa pedagogia do “pensar e construir”
Mas há uma outra pedagogia (que tem lugar majoritário no mundo educacional contemporâneo). Trata-se de uma pedagogia que se articula em torno do binômio “pensar” e “construir”. Quem não conhece uma escola cujo lema seja “educar para o pensar”, ou mesmo “educar para construir”? Ora, o pensamento é tomado, na contemporaneidade, como fundamento de realidade. Trata-se de uma espécie de “Descartes” elevado à décima potência: eu penso, logo eu existo, ou melhor, eu penso, logo eu sou. E eu sou, logo o mundo é. E se ele é em razão do meu pensamento, então a liberdade se expressa no tamanho da minha capacidade de conformar o mundo ao meu próprio pensamento: eis porque Sartre era capaz de dizer: a minha existência precede a minha essência. E isto, completo eu, porque, se para estes pensadores educar é pensar e construir, então o meu ser deve conformar-se ao meu pensamento como fruto da minha própria construção, e eu sou mais livre quanto mais eu seja capaz de, incondicionalmente, amoldar (ou moldar) o mundo ao meu pensamento e à minha vontade. Eis uma pedagogia capaz de criar “pequenos deuses” autoritários e incapazes de vivenciar frustrações: uma pedagogia em que se pode livremente dizer, com Simone de Beauvoir, como propôs o último ENEM: “uma mulher não nasce, faz-se”. Aliás, para ser honesto, qualquer pessoa que se paute por tais princípios não admite, em si, o que é nascido, ou seja, dado ou dom, mas apenas o que é feito, construído, por seus próprios meios e em conformidade com seu próprio pensamento fundador e incondicionado por qualquer noção de realidade ou de verdade que não decorra do próprio pensamento ou da própria construção pessoal.

Uma pedagogia assim não acredita no conhecer, nem no refletir, porque nega no mundo o que é dom. Está fechada a Deus por princípio. Transforma o professor num deus que, a pretexto de consttruir deusezinhos de seus alunos (que ele chama sempre de “estudantes” a partir de uma lenda qualquer de que “aluno” significa “sem luz”, o que é uma ignorância enorme do latim, no qual “aluno” significa simplesmente “aquele que é nutrido”) acaba tornando a educação, no final, num grande meio de propaganda e de imposição de ideologias: no confronto entre o pensamento do professor, adulto, estudado, experiente, preparado, e o pensamento do aluno, jovem, imaturo, despreparado, aberto à novidade, não é difícil descobrir quem está de fato pensando no lugar de Deus. E quem está construindo quem à sua própria imagem e semelhança.

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