Brasilia, (ZENIT.org) Paulo Vasconcelos Jacobina
No primeiro artigo
desta série, havíamos proposto três perguntas que se relacionam com a
decisão de inserir para os alunos, na mais tenra infância, uma discussão
moderninha a respeito das “novas configurações de família”,
fundamentadas numa concepção de família (e portanto também de
sexualidade) que tem fundo ideológico (mais sobre a diferença entre
teoria e ideologia num artigo aqui),
mas que está se impondo na nossa sociedade como fato consumado, a
partir de uma série de equívocos filosóficos e pedagógicos e do apoio da
grande mídia.
Discutimos, no primeiro artigo, aqui, a diferença entre uma pedagogia
reta, de matriz aristotélico-tomista, em que o binômio “conhecer” e
“refletir” fundamentam uma noção de liberdade dirigida ao fim de atualizar as potências dos seres e as virtudes das pessoas,
ou seja, de participar num mundo dado e aberto, como criatura, por um
lado, e a pedagogia do binômio “pensar” e “construir”, por outro, com
seu existencialismo laicista que coloca as pessoas como vontades
onipotentes e adversárias do outro por princípio, deusezinhos incapazes
de lidar com limites e frustrações, e como, no confronto entre ideólogos
e crianças, estas últimas são a parte frágil de uma luta entre
“pensamentos” e “construções de mundo”.
Agora, trata-se de propor o seguinte questionamento: à luz da teoria aristotélica das quatro causas e dos atos e potências, bem como da noção aristotélico-tomista de analogia de atribuição e de proporcionalidade, o que significa “família”? É possível acolher e discutir toda a riqueza da noção de família à luz do conceito filosófico da analogia, sem, ao mesmo tempo, desprezar os critérios da reta razão, da cultura e das tradições religiosas autênticas?
A covardia da discussão emocionalista.
Há uma primeira observação a ser feita aqui. A nossa
contemporaneidade está permeada por um “emotivismo moral” que tem um
fundo muito autoritário, porque impede de antemão as discussões de
certos temas a partir de uma falsa noção de misericórdia. Tratamos deste
tema num artigo aqui,
mas, em resumo, trata-se de acusar o outro de insensível, de farisaico,
de retrógrado, a partir da reafirmação das suas próprias dores
existenciais – algo como confundir propositalmente entre um torturador e
um cirurgião. Assim, alguém que argumenta que “o dia dos pais e o dia das mães não deve existir” porque “meu
filho sente muita mágoa por não ter pai/mãe, e é muita maldade celebrar
a paternidade quando tantos não têm pai, e um pai nem sequer é
essencial numa nova conformação de família” não está argumentando
seriamente, mas desviando a discussão através do sentimentalismo. A
paternidade é um fato biológico, cultural e social importantíssimo, e a
dor psicológica pela sua ausência acidental não se resolve pela eliminação do
louvor da paternidade pelo outro. Também o apelo barato a uma noção
sentimentalóide de “amor” como “único fundamento da família” tem a
dimensão de mera propaganda ideológica que impede a verdadeira discussão. Nem a verdadeira noção de amor é esta, nem a família se limita a ser “somente amor”. Tratamos disso num outro artigo aqui.
As quatro causas e a família.
Falamos, no primeiro artigo, de uma reta pedagogia que parte de uma
reta filosofia, de origem aristotélico-tomista, que reconhece o conhecer
como o encontro com este ser que interpela o conhecedor, e precede logicamente ao conhecimento, e que tem proporção com a inteligência que conhece; neste sentido, o real, que mensura o conhecimento, revela-se com uma estrutura ontológica muito simples, em que o dinamismo do existir não tem uma rigidez determinista, mas longe disso, caminha das potências aos atos, aberto à liberdade humana, através de quatro causas: a causa material, a causa eficiente, a causa formal e a causa final.
Para imaginar que é possível aplicar a noção de conhecimento pelas
quatro causas à realidade da família, é preciso fazer uma declaração
preliminar importante: a de que a família não é uma “construção social”,
mas uma realidade ontológica humana, que, é certo, apresenta variações
culturais e históricas importantes, mas que existiu, de uma maneira ou
de outra, como realidade apreensível pelo menos de modo analógico em absolutamente todas as
sociedades humanas até hoje. Ela existia antes que houvesse filósofos,
professores, escolas, estados e nações, e presumidamente existirá
enquanto for viável existirem pessoas humanas na Terra. E isto por uma
questão de necessidade ontológica, não de contingência cultural ou
histórica: enquanto houver pessoas humanas juntando-se para reproduzir, haverá, ao menos analogicamente, uma família, quaisquer que sejam os condicionamentos conjunturais.
Seria impossível fazer aqui uma explicação mais detalhada das quatro causas.
Qualquer introdução à filosofia minimamente decente o fará – e isto
exclui a maior parte dos livros secundários de filosofia atualmente em
uso, com suas pretensões sociopolíticas e seu afetado engajamento
pseudocrítico. Mas cabe-nos aplicar esta estrutura ontológica das quatro
causas à realidade da família, para estabelecer critérios. E tornar claro exatamente do que estamos falando, quando falamos de família.
Como dizia o velho Aristóteles, somente se pode falar em conhecimento
científico quando se conhece pelas causas. E somente se pode debater um
pensamento quando se conhece a raiz do que se está pensando.
Por isso, exponho abertamente as raízes do que penso, num debate em que
muito poucos fazem o mesmo – o que constitui, aliás, uma deslealdade no
debate.
Eis então como se conhece a família pelas quatro causas.
A causa material.
Qualquer família tem em si uma causa material. Esta e
constituída por seres humanos, criaturas a um só tempo corporais e
espirituais, mas que são causa material exatamente na sua materialidade:
somente a partir de corpos complementares há uma justa causa material para a construção do conceito analogante de família (mais sobre analogia adiante). E esta não é uma constatação arbitrária: dois corpos biologicamente complementares representam
o requisito mínimo suficiente para que a família ganhe relevância além
dos dois envolvidos, uma vez que este é o requisito material mínimo e suficiente para
que as relações entre os dois seres corporais envolva naturalmente a
potencialidade de geração de um terceiro ser corporal. Nenhuma outra
causa material pode gerar tal efeito, e todas as outras podem ser
reduzidas a esta, quer por univocidade, quer por analogia.
A causa formal.
A causa formal, ou forma, é constituída pela união estável e complementar, expressamente manifestada, de declaração de aceitação do outro e de disposição de assumir as consequências decorrentes de uma união assim, para o bem dooutro e da prole a vir. A
manifestação adequada da vontade, portanto, pode ser analogada pela sua
manifestação tácita, no caso das uniões de fato, ou mesmo pela
imposição involuntária da responsabilidade ao genitor leviano, no caso da reprodução por relação casual. Nestes dois últimos casos, temos famílias por analogia, como analogados secundários à analogante família causada por “consentimento expresso e informado”, que é causa formal perfeita da família. Falar em analogia não representa, aqui, um julgamento moral, daquelas realidades familiares resultantes de causas formais imperfeitas, mas de um mero critério ontológico.
A causa eficiente e a causa final.
Quanto à causa eficiente, trata-se, aqui, da sexualidade exercida
no campo da complementariedade (causa material) e da abertura à
fecundidade (causa final, de que trataremos adiante). A sexualidade,
portanto, pertence à órbita da causa eficiente da família, mas há
estruturas que podem ser designadas como família por analogia em que a
sexualidade não se exerce com a perfeita atualização de suas potências
procriativas, como nos casais naturalmente inférteis, ou mesmo não se
exercem nenhum sentido, como no caso em que um dos cônjuges falta e o
outro prossegue com a criação da prole. Por fim, a causa final é o apoio estável recíproco, em comunhão de vida de base sexual complementar, e a abertura à procriação; há, também aqui, arranjos análogos que
merecem o nome de família, mesmo sem atualizar completamente suas
potências quanto às causas finais. Falo, por exemplo, de cônjuges que
casaram-se já idosos, sem fecundidade natural em razão da idade. Eles
continuam, em tese, abertos à causa final da procriação, mas isto já não depende de sua vontade. Ou de famílias formadas por um só dos cônjuges e sua prole.
Trataremos da aplicação da analogia à noção de família no próximo artigo.
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