Marta Brancatisano é antropóloga,
professora de Antropologia na Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em
Roma, e diretora do mestrado “Amor, família, educação”, na mesma
universidade. Ela afirma que “a cultura atual tem muitas incertezas
sobre o significado do ser humano e da relação entre homem e mulher.
Isso é estranho, porque as ciências humanas são capazes de dar respostas
muito precisas sobre a relacionalidade como fundamento da vida e sobre a
feminilidade e a masculinidade como elementos da humanidade”.
A beleza da sexualidade
A sexualidade, prossegue a antropóloga,
“exige manifestar-se em toda a sua beleza e em todo o seu valor a partir
da cultura cristã. Na carta apostólica Mulieris Dignitatem, João Paulo
II fala da sexualidade como de um caráter ontológico, não como mera
função”. Hoje, devido à propagação da cultura da contracepção, “falta a
plenitude e a completude espiritual e física do amor, que só pode se
manifestar na relação entre homem e mulher”.
Contracepção e Procriação
Brancatisano destaca: “A cultura da
contracepção contraria a cultura católica, que se mantém firme ao longo
dos milênios na visão antropológica e sacramental do casamento. É
verdade que, neste contexto, as razões em favor da separação voluntária
entre amor e procriação nunca são atribuídas a uma valorização diferente
dos dois bens, mas sim a uma necessidade, eu diria contingente, de
enfrentar os desafios que o mundo atual apresenta aos cônjuges como
pais; por exemplo, dificuldades econômicas, mudança no papel das
mulheres etc”.
O cisma silencioso
Formou-se uma corrente de pensamento
“que tende a tornar a contracepção compatível com a identidade do
casamento, ainda que mediante a sua interpretação como um ‘mal menor’ em
vez de um ‘direito a ser reivindicado’. Esta situação é abordada pela
encíclica Humanae Vitae, que responde com tanta clareza a esta visão que
chegou a despertar entre os próprios católicos o que tem sido chamado
de ‘cisma silencioso’, ou seja, o afastamento de grande parte dos fiéis
dos ditames do magistério no tocante ao casamento e ao significado da
sexualidade”.
A carta do Papa João Paulo II
Em 1988, vinte anos depois da encíclica
Humana Vitae, a carta apostólica Mulieris Dignitatem, de João Paulo II,
“se torna um documento sem precedentes na história da Igreja porque abre
uma perspectiva antropológica: os conteúdos da exegese de João Paulo II
(inspirados no Gênesis e em Mateus 19) ‘completam’ a Humanae Vitae.
Assim, captamos a conexão íntima entre a procriação e a estrutura
antropológica que se manifesta na relação entre homem e mulher”.
Criação e casal homem-mulher
Do relato duplo da criação do ser
humano, segundo a exegese feita pelo autor de Mulieris Dignitatem,
Brancatisano observa que “surgem traços de identidade do homem e da
mulher, mas também a clareza de que o ser humano se completa apenas com a
constituição do casal homem-mulher”. A linguagem poética do Gênesis nos
diz que “todo ato criativo contava com a aprovação de Deus. A
complacência divina (‘e Deus viu que isso era bom’) só se rompe diante
de uma lacuna: ‘Não é bom que o homem esteja só’”.
Ajuda e totalidade da relação
Brotam desta visão alguns conceitos básicos que a antropóloga classifica assim:
1) Solidão/ajuda: diante da negatividade
do estado de solidão, o Criador estabelece, como antídoto, o estado de
ajuda, que prenuncia a dimensão relacional e a interdependência
ontológica entre homem e mulher;
2) Totalidade da relação: as palavras “o
homem deixará seu pai e sua mãe” indicam a prioridade desta nova
relação sobre as outras, ainda que vitais, como a relação
filiação/paternidade ou filiação/maternidade.
Uma só carne
A totalidade também decorre “da
modalidade de realização da relação: uma modalidade específica e
inédita, indicada pelas palavras ‘uma só carne’. Isto expressa,
literalmente, unidade e corporeidade. O modo de unir-se e de ser um para
a outra e uma para o outro, que caracteriza a relação entre homem e
mulher, é indicado na sua dimensão física não para restringir o seu
âmbito de aplicação apenas ao material, mas para indicar a totalidade da
pessoa, cuja parte corpórea é sinal e testemunho da parte espiritual
invisível”.
Sexo, masculinidade e feminilidade
Desta forma, prossegue a antropóloga,
vem à luz “um caráter do ser humano que João Paulo II define como
ontológico: o sexo. Esta passagem da mera função procriadora para um
elemento constitutivo da pessoa, ao mesmo tempo que sanciona a
complementaridade como condição para a plenitude da humanidade, afirma
que a feminilidade e a masculinidade são dois modos de ser ‘ser humano’,
projetados pelo Criador para a união e fundamentados em uma diferença
estimulante do ser”.
O estado de plenitude
É também “uma experiência humana
universal” que, na união de amor “feita de aceitação plena,
maravilhamento alegre, doação total, o homem se faz homem, ou seja, põe
em ato a sua masculinidade, e a mulher se faz mulher, pondo em ato a sua
feminilidade”. Desse “estado de plenitude” emana “a energia vital que
inunda o casal e que, do casal, se derrama para fora: seja produzindo
uma nova vida, seja reforçando na vida as relações circunstantes,
segundo a dinâmica que, desde sempre, identifica na família a base da
sociedade”.
Contra a visão estreita da vida
Estas reflexões de Brancatisano desafiam
a “cultura da contracepção”, que diz que a relação se aperfeiçoa
justamente na separação entre união e procriação, como se a procriação
fosse um limite intrínseco ao amor. Para a antropóloga, porém, deixar de
fora da união a própria capacidade de geração “é tornar parcial o que
era total: significa substituir o ato de fé no outro e na capacidade
humana de amar por uma visão mais estreita do sentido da vida,
totalmente humana e fechada ao transcendente, suscetível de cálculo e
mensuração, enquanto a totalidade do amor é um ponto de contato com Deus
mesmo”.
Um projeto que renuncia à felicidade
A relação de amor entre homem e mulher
como fundamento antropológico “não restringe a escolha existencial ao
casamento. Simplesmente revela a estrutura humana e, a partir de uma
perspectiva esponsal, interpreta a orientação humana do ser”. Amor e
vida são “sinônimos” e são vividos e realizados “na relação de doação
total entre homem e mulher. A cultura da contracepção tira o amor humano
do seu estado original de semelhança com Deus e o reduz a um estado
‘humano’, onde o homem sozinho projeta a si mesmo e a vida. É um projeto
que tende a eliminar os riscos e que, em nome da ‘segurança’, renuncia à
felicidade e se adapta a uma serenidade sem impulsos à completude”.
Gelsomino del Guercio
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